Eu vejo essa parada da música de forma muito louca. As tribos indígenas não cantam porque é sucesso. Os caras cantam porque se sentem bem cantando. A música é um ritual e nasceu com esse propósito. Cantam e dançam pra chover, pra colheita melhorar. O princípio da música é o poder que ela tem de fazer com que as pessoas se tornem um só. A música tem esse poder de tocar o coração das pessoas e fazer com que elas sintam que estão lutando por alguma coisa.
(Emicida)
Por Natália Martino
Chapéu de palha, bermudão, camisa de malha e óculos escuros da MTV adquiridos na véspera, durante a premiação do VMB (Video Music Brasil). Foi assim que Leandro Roque, mais conhecido como Emicida, encontrou com a reportagem da NovaE na estação Tucuruvi do metrô paulista, na zona norte da cidade. Nos pés, o polêmico tênis que a Nike personalizou com a frase da música Triunfo: “A rua é noiz”.
Em uma lanchonete próxima ao metrô, o rapper que foi apelidado de “matador de MCs”, Emicida, pelas inúmeras batalhas de Freestyle vencidas, falou em entrevista exclusiva sobre os caminhos percorridos, seus sonhos e desafios, enquanto o atendente entoava versos das suas músicas. “Ele sabe todas e canta sempre que eu venho aqui”, diverte-se. Mais tarde, na sua casa, também perto dali, ele mostrou a música nova, Como um sonho, publicada no MySpace no dia anterior. Em menos de 24 horas, 5 mil acessos. Nos versos, considerações sobre o tênis da Nike e a derrota no VMB. “Mas a música já estava pronta antes da premiação”, confessa, afirmando que sabia que não sairia vitorioso.
A repórter pôde ver também as ilustrações de Emicida, que desenha desde criança e já foi ilustrador profissional. Vai abandonar totalmente o desenho? “Nossa, não repete isso!”, é a resposta. Dentre as imagens, os desenhos que deram origem ao boneco que foi carimbado, em processo totalmente artesanal, na capa do seu primeiro CD. Com uma fita cassete no lugar dos rostos, Emicida criou vários bonecos que representam diferentes artistas, de Djavan a Bob Marley. Apenas uma amostra da variedade de influências musicais absorvidas por ele.
Você começou sua carreira no rap nas batalhas de Freestyle de São Paulo, saindo vencedor inúmeras vezes consecutivas. O que te diferenciava, já nesse início, dos outros MC’s?
Eu sou muito fissurado em rima e fiquei muito tempo olhando como as pessoas faziam e praticando sozinho. Quando eu mostrei a cara todo mundo me via como novato, só que eu estava há anos assistindo e fazendo rimas pra mim mesmo. Normalmente as pessoas metem a cara e vão aprendendo no caminho. Eu não. Estudei muito antes, várias coisas eu já sabia.
Mas improvisos e rimas exigem certo talento, não só estudo, não é?
Tenho facilidade pra cantar e pra improvisar porque eu escrevo muito, desde criança. Eu assistia desenho animado e chegou um momento em que eu quis inventar minhas próprias histórias, escrever meus roteiros. Criava histórias em quadrinhos.
No início da sua carreira, você trabalhava em várias outras atividades, foi de pedreiro a ilustrador. Como foi a decisão de abandonar tudo e viver só de música?
Na real, a vida foi me empurrando pra isso. Não dava tempo mais de fazer as outras coisas. As datas dos outros trabalhos batiam com as datas dos shows. Eu já estava acostumado a fazer música por hobby, até pelo pessimismo que as pessoas têm. Todo mundo fala que é complicado viver de música, que dificilmente alguém consegue. Eu não acreditava que seria uma exceção, que eu conseguiria viver só da minha música, pagar minhas contas. Por isso eu fazia vários shows de graça, não era meu trabalho. Um dia resolvi cobrar pra ver se eles pagariam. Pagaram.
Você explora muito a tecnologia para divulgar seu trabalho, usando o MySpace, o Facebook, o Twitter, o blog e até um site mais recentemente. Essas tecnologias, porém, são muitas vezes apontadas pelos músicos como vilões, pela ameaça que representam aos direitos autorais. O que você acha disso?
Essa questão vai ser o eterno dilema da música. Quando inventaram o rádio os caras já se perguntavam sobre como movimentar dinheiro pra fazer sua música e viver dela. Achavam que ninguém mais iria a shows, ouviriam a música de casa. Aí inventaram o direito autoral. Agora vão ter que inventar outra forma de controlar esse direito autoral pra que as pessoas continuem ganhando dinheiro com sua música. No Brasil, as gravadoras deram um tiro no próprio pé mantendo os preços altos dos CDs, que acabou sendo transformado em artigo de luxo. CD pirata é que é popular, acessível. Os CDs originais poderiam ser vendidos pelo mesmo preço. Claro que um CD que tem um trabalho maior, vai ter um custo mais alto, mas R$ 10 é um preço mais que justo.
O seu CD foi vendido a R$ 2. Como foi possível manter o preço tão baixo?
Eu penso nisso há muito tempo, estudo há anos o preço que dá pra fazer. A idéia era tirar os atravessadores, os intermediários. Então tiramos gráfica, distribuição, tudo.
Você foi indicado para duas categorias do VMB da MTV, mas quem acabou vencendo nessas categorias foram os tradicionais Skank e MV Bill. Isso foi uma surpresa pra você?
Eu sabia que não ganharia, mas não queria desde o primeiro momento da indicação ficar com uma cara de desânimo. Obviamente que se a gente ficasse de fora da premiação ia ser ridículo, porque ninguém fez mais barulho que a gente, nenhuma daquelas bandas. Todos os outros veículos falavam do Emicida. Não teria como não nos convidarem pro Vídeo Music Brasil. Mas o prêmio é grande e uma vitória de um músico como eu seria provar que várias pessoas não precisam de uma gravadora. Seriam levantadas questões que eu não acho que seja interessante levantar na mídia. Eu acredito que esse foi o motivo real de a gente não ter chegado lá.
E você fica chateado com isso?
A única parada que me deixou meio chateado foi que minha mãe ficou triste com essa história toda. Ela estava apostando. Quando saiu no jornal (Folha de São Paulo), minha mãe mostrou pra todo mundo, até dormia com o jornal.
Seu novo empreendimento é o site noiz.com.br. Qual é o seu objetivo com esse site?
Com o que temos agora nas mãos, somos extremamente ambiciosos. Trocamos idéia há muito tempo sobre os meios de comunicação, principalmente os que tratam de música e cultura, e concluímos que faltava um site que falasse de rap com a propriedade de quem vive esse universo. Então, montamos uma equipe e escrevemos um projeto. Queremos um dia sair da internet e transformar o projeto em uma revista. Um dia em uma rádio. Depois em um canal de televisão.
Só sobre rap?
Não, quero falar de tudo. Meu site é livre como eu sou. Dicas de livro, de cinema, notícias sobre outros estilos musicais. É isso que eu quero. Quem gosta de rap, vai lá e vê milhões de outras coisas. Conhece, se interessa. Atrai também pessoas que não são do rap, que podem se interessar depois. Claro que grande parte do material é sobre rap, hip hop. Todo mundo da equipe ama o hip hop e é disso que queremos falar. Só que não vamos nos limitar. O hip hop nasce de diversas influências, bebe de outras fontes há muito tempo. As pessoas têm uma cultura de que o hip hop é extremamente fechado, existe só dentro dele, mas o hip hop é uma cultura que revisita todas as outras. Se não tiver diálogo com outras manifestações, ele não existe.
Mas se esse diálogo é tão importante no hip hop, porque ele é considerado fechado?
O rap, que é a música do hip hop e é a manifestação com maior alcance dessa cultura, foi difundido por alguns artistas que têm uma postura muito fechada. No nosso caso, os Racionais, maior grupo de rap do país. As pessoas, por reconhecerem neles os maiores representantes do rap, acreditam que esse estilo musical é muito fechado. Só que milhares de outras pessoas estão aí pra dialogar.
Você é uma dessas pessoas abertas a o diálogo, não é? Sua música sofre influências do samba, do jazz...
Eu sou livre. Escuto todo tipo de música, não me prendo a um gênero, a um estilo, a uma pessoa.
Em uma de suas músicas mais famosas, Triunfo, você diz que fala pelos esquecidos, por quem está na rua. Você se considera mesmo porta-voz dessas pessoas?
Sim, o “embaixador da rua”. Eu sou isso.
E as pessoas reconhecem isso em você?
Essa parada só chegou aonde chegou porque as pessoas se vêem em mim. Nossa música não limita os temas, somos sinceros, se eu cair, vai ser rimando. Falo da minha vida e a minha vida é igual à de qualquer pessoa, por isso as pessoas se identificam tanto. Quando digo que sou o “embaixador da rua”, quero dizer que sou mais uma dessas pessoas, só que em um lugar diferente.
Você acha que a música pode ajudar a mudar a realidade?
A música tem esse poder desde que ela não se torne só um jingle, do tipo “vamos salvar o mundo”.
Mas como pode mudar a realidade?
Eu vejo essa parada da música de forma muito louca. As tribos indígenas não cantam porque é sucesso. Os caras cantam porque se sentem bem cantando. A música é um ritual e nasceu com esse propósito. Cantam e dançam pra chover, pra colheita melhorar. O princípio da música é o poder que ela tem de fazer com que as pessoas se tornem um só. A música tem esse poder de tocar o coração das pessoas e fazer com que elas sintam que estão lutando por alguma coisa.
E você acredita que está fazendo isso com a sua música?
Sim, mas tem muito mais gente pra eu alcançar.
O seu público tem um perfil específico?
A gente vai hoje em um show e não acha estranho encontrar emos, punks, patricinhas. Isso é uma conquista e é meu ideal. Se a gente está aqui pra combater preconceito, racismo, injustiça social, eu acho que eu venço todas essas coisas quando coloco pessoas diferentes cantando uma mesma música em um mesmo lugar.
E é muito raro conseguir fazer isso com rap, não é?
É tão raro que eu acredito que eu sou o primeiro. (risos)
E como foi a história da Nike? Como a frase “a rua é noiz” foi parar no tênis?
Isso rendeu a polêmica do ano. Eu odeio esses malucos que ficam falando que Fulano se vendeu. A gente está na mídia e obviamente a Nike quer estar com o logotipo dela em todo lugar, quer investir. Eles trouxeram a loja pro Brasil e começaram com essa história de customizar os tênis. Existe uma quantidade de desenhos e você pode escrever uma frase. Mas nunca é um desenho que seja de fora da Nike. A única exceção é essa. Fizeram um tênis com a minha frase e o meu logotipo, que é a minha tatuagem. Esse é o grande diferencial. Esse tênis não é uma série especial, não está sendo vendido. Só tem esse no mundo, o meu. Quando o tênis ficou pronto, colocaram uma foto no blog da Nike e eu coloquei essa mesma foto no meu blog. Aí alguns jornalistas não quiseram saber o que aconteceu e falaram que a Nike tinha lançado uma série especial em homenagem à musica Triunfo. Mas não era isso, era só um presente. E não é nada único, outras pessoas também já foram presenteadas. O D2 tem um tênis escrito “arte do barulho”. Com essa divulgação, recebemos vários e-mails pedindo tênis, no Orkut as pessoas começaram a debater, dizendo que o Emicida se vendeu. Outro dia saiu no jornal uma coluna falando que o Emicida apóia trabalho escravo porque ele usa Nike.
E qual é a sua reação diante disso tudo?
Ah, eu não vou explicar nada pra eles. Os caras não chegam em mim e falam isso, eles mandam e-mail. Eu falo “ô irmão, levanta daí e vai lá no espelho. Se não tiver nenhum logotipo no seu corpo, eu vou aceitar sua crítica”. Todo mundo usa um tênis de alguma marca, usa Havaianas. Eu não posso ter um tênis só porque sou o Emicida?
Você já tem planos pra lançar um novo CD?
Estamos tendo umas reuniões, a gente já quer entrar em estúdio pra fazer o disco oficial.
Dessa vez o CD vai ser produzido em parceria com alguma gravadora?
As gravadoras estão aparecendo agora. Estamos abertos a conversar, mas a gente tem algumas exigências. E eu acho bem difícil fecharmos essa parceria hoje, porque os modelos de contratos que me enviaram não agradaram. Não conseguimos sincronizar as energias pra caminharmos juntos. Quem sabe em uma próxima.
Então vai fazer tudo sozinho de novo?
Se eu tiver que fazer tudo, eu vou fazer tudo. Vou gravar meu disco, vou estudar uma forma melhor de distribuição.
Olhando pra frente, você tem medo de alguma coisa?
Não, de nada. O que eu tenho que fazer, eu faço. Não tenho sonhos, tenho projetos.
terça-feira, 3 de novembro de 2009
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